sábado, 21 de julho de 2007



Não há lembrança alguma que poderia, o pesar, roubar-me
Nem mesmo o olor da flor mais frágil.
Nem mesmo a voz rouca da garganta seca de meus ancestrais fantasmas.
A vela não seria capaz, da alcova, iluminar toda esta espectral paisagem .
Minha mente cala-se no vácuo da noite, na calada do vento da montanha.
Na face rósea de Vênus, eu vi rolarem as pérolas deste amanhecer.
Para nunca mais ver quem me embriaga, Hécate tampou-me os olhos,
Mesmo que eu tentasse forçar a memória, o vinho que tombei
- à garganta para que me fizesse morrer sem culpa em quaisquer braços –
Corou-me as bochechas e me dilacerou a carne.
Como um bufão, tortuoso em meu andar, e com o corpo a balançar,
Deitei-me aos pés da Lua humilhando-me no folguedo dos nobres.
E do corpo torcido, manco, corcunda e com o rosto disforme
Arranquei em minha rudeza os cravos e jasmins.
Riram de mim todas as máscaras do teatro, depois de muito correr dei-me por vencido.
Não houve donzela que me amou, tampou um amigo a me aconselhar.
E os gritos, malditos rugidos no qual revelou-se minha besta.
Ah, fera! Colocou-me nesta jaula com meu comportamento nefasto.
Bruxa que me percebeu insensato,
Deixou-me aqui – com o gosto amargo de seu elixir –
Acorrenta-me, pobre palhaço, não há nada que me aprisione mais que a solidão
E nem maior vontade que me liberte, que alcançar uma migalha de pão.
- rolou da mão da dama jovem... caiu... mas não alcanço.
Que belo desejo poderia um bufão sem riso ter?
Se eu pudesse, cantaria para alegrar quem me cega.
Pois se o sol por ventura bate neste calabouço, é apenas o pendulo de minha agonia.
Que nem seu brilho vontade alguma me traz.
Nem memórias, nas quais eu pudesse me refugiar.
Maldito Rasputin, até o que havia neste coração levou.
Voou com o vento... se foi.
Quando durmo sonho com a jovem de cabelos castanhos ao piano.
Que indecência, nem saberia dizer se é minha esposa ou filha.
E se não for ninguém? Melhor que seja um vulto,
Como sou no pesadelo das crianças que com meu horror se assuntam.
Chicoteiam-me os cavalheiros, me pisam seus cavalos.
Eu cheiro a esterco.
Mas é um alívio nas horas de tortura poder sentir o cheiro da grama.
Minha morte vem ao poucos, e cada vez acredito que demore mais a chegar.
Pois quando penso em eternidade, lembro de uma saudade de alguém
Que pode não ter existido, e a sina de nunca ter amado.
Mas se é noite de festa, eu posso me aliviar.
Mais uma vez me embriagam, e mais uma vez eu me humilho para Lua.
Talvez Vênus tenha pena de mim, pois sempre vejo suas lágrimas no orvalho.
Tenho dormido todas as noites sobre meu próprio sangue,
As feridas não cicatrizam...
Daí nenhuma lembrança... nem a voz baixa do padre.
Encomenda minha alma ao diabo, velho, que esta face horrenda
Não merece repousar ao lado de Deus.
Turvou-me a visão, o vinho, e destruiu-me a razão.
Sem saber de onde eu vim, só conheço a canção dos camponeses.
E fiz dela algo meu, onde eu canto feito tenor, e todos pensam
Que sou um anjo.

Para onde as flores vão no inverno

"Como uma furiosa serpente a corrente dos acontecimentos devorou meus anseios e esperanças, uma a uma, minhas vontades foram oprimidas. Porém confesso minha culpa neste tribunal – onde o ar rarefeito me sufoca – eu deixei que elas se calassem. Sei o destino ao qual pretendo chegar, conheço minhas sinas futuras e os pecados de meu passado, mas sempre parece haver uma curva onde não devia existir. E por que eu volto no tempo? Talvez acredite que relembrando, se reviva e assim, talvez exista algo no passado que eu possa mudar: um livro que eu não li, a letra de uma música que eu não entendi, uma porta fechada, uma janela aberta.
Tudo foi morrendo, e as flores no jardim eu parei de regar.
Nem mais pessimismo!
Mas remoer-se todos fazem, os indiferentes, os desiludidos, os suicidas, e eu não serei mais uma que nada acrescenta.
Quando achei que todos não reparavam, descobri que alguém se importa.
Por este motivo (e na esperança de me tornar quem realmente sou) dedico a beleza de uma filosofia de vida – que pretende em sua natureza revelar o divino de cada sentimento – aos olhos de uma criança.
A pedido de uma grande amiga."

 *

Quantas framboesas! Muitas, incontáveis e inexplicáveis.
- Mãe – perguntou Lorena a sua mãe que fazia um café fresco naquele entardecer - Para onde as flores vão no inverno?
O cheiro do café que mãe de Lorena fazia, preenchia não só a cozinha, como a sala, os quartos, a casa inteira cheirava a café fresco.
Sentada à mesa da cozinha, Lorena entediada de treinar sua caligrafia, fazia desenhos de flores no pé das folhas do caderno. Olhou mais para o meio da mesa e viu seu giz de cera espalhado junto com folhas em branco. Preparava-se, emocionalmente e com cautela, para deixar o caderno e se por logo a pintar. Mas sabia que ao fazer isso levaria um pequeno puxão de orelhas por não ter terminado a lição, achou melhor conter essa vontade. E foi neste suspiro de quem sabe que deve esperar o final de semana para ir ao parque, que Lorena pões os olhos sobre uma antiga foto amarelada de seu avô, pai de seu pai, falecido há pouco tempo. Lorena não saberia dizer o tempo exato (arregalou os grandes olhos castanhos sobre a foto) mas sabia que era recente pelo tamanho da dor que ainda sentia.
Lorena lembrou que as morriam no inverno, ligando assim a idéia da perda recente. Havia sido o inverno de seu avô.
- Mãe, para onde as flores vão no inverno?
A mãe de Lorena estranhou a pergunta. Sentiu pela voz da filha que não era bem isso que ela queria saber.

Ah!O cheiro de café por toda a casa. Na sala o rádio ligado com o volume baixo não deixava o silêncio reinar. O locutor tinha uma voz grave e macia – Voz de travesseiro, parece que ele fala no nosso ouvido, dizia sua mãe – Desde então, quando durante a noite Lorena contava seus segredos para o travesseiro, era com essa voz que ele respondia, aconselhava e conversava com a pequena.

A mãe de Lorena serviu-se de café, em silêncio virou-se na direção da filha, cortou um pedaço de bolo e passou nele um pouco de geléia. Sentou-se a mesa. Percebeu que Lorena arregalava os olhos sobre a foto do avô, deu um suspiro e Lorena pensou que aquele suspiro era diferente, não era suspiro de quem espera para ir ao parque, era outro suspiro. Era suspiro de pesar.
A mãe de Lorena bebeu um gole do café já adoçado, engoliu, continuou sentindo o gosto. Ela disse a Lorena, com um doce sorriso, que as flores iam para o céu.
Mas para Lorena, isto não fazia muito sentido, a única coisa que lhe importava era a dor da saudade, aquele vazio imenso que seu avô havia deixado. Quis saber o que fazer com a saudade, ela queria parar de sentir dor, não queria mais que lágrimas caíssem antes do sono.
Olhou em volta como se tentasse descobrir algo, nas paredes e em sua volta, que lhe fornecesse meio de diminuir sua dor. Assustada percebeu que até as flores do pequeno vazo na sala haviam morrido. Viu na estante fotos de parentes que não estavam mais com eles.
Na sala, Lorena ouviu um barulho novo, seu pai chegava cansado e com os passos vagarosos. Apesar de jovem, seu pai era muito pálido e magro, o que lhe tornava extremamente parecido com seu avô.
Mal seu pai acabava de sentar no sofá de estampas gastas, Lorena largou seu caderno e foi ao seu encontro. Por alguns segundos permaneceu imóvel, bem a frente de seu pai, seus olhares se alto sustentaram. Estáticos! Lorena temerosa por achar que poderia estar próximo o inverno de seu pai e este confuso e atordoado pelo semblante da filha.
- Eu não quero sentir saudades de você, pai! – Disse Lorena quase me lágrimas.
Vagarosamente deitou-se no colo do pai, segurando com força sua camisa, se acolheu naquele canto sagrado.
O pai de Lorena, curioso e comovido pela demonstração de carinho da filha, a abraçou e do cansaço passou a uma grande calmaria.
Lorena acabou perdendo a noção do tempo em que estava naquele colo e naquele abraço quente. Pensou, formulou muitas questões e idéias sobre a partida, sobre sentir-se sozinha, sobre o choro – Mas nós não enterramos as flores!- murmurou ela. Descobriu que seu pai era o botão de seu avô, ela seria o mesmo de seu pai e um dia teria seus botões.
Fechou os olhos com força, como se assim agarrada ao pai, ela pudesse evitar que o inverno chegasse.
A noite ficou imensa lá fora, e logo estava dentro de sua casa. Sua mãe sentou-se ao lado dos dois e finalmente a pequena adormeceu.
A manhã seguinte também amanheceu fria, mas algo havia mudado.
Bem quieta foi até a cozinha, pois seus cadernos ainda estavam sobre a mesa.
Encheu um copo com leite, passou a geléia de framboesa em algumas torradas e começou a escrever:
“Oi vô, ontem eu descobri para onde as flores vão no inverno, elas vão perfumar o céu! Mas eu descobri que nós, aqui na terra, podemos sentir ainda o perfume das flores com a lembrança. Mas, vô, a lembrança não é a mesma coisa, por isso eu chorei muito, eu senti muita falta, eu quis que meu inverno também chegasse.”
“Fiquei com muito medo de perder outras flores, e nada eu poderia fazer para impedir isso. Mas foi quando abracei meu pai que descobri a terceira coisa, que sem dúvida é a mais importante: quanto mais eu sentir o perfume da flor, mais forte a lembrança dela ficará na memória.”
“Eu acho que a dor, a tristeza e a saudade, apesar de dolorosas, são importantes, pois assim, vô, eu sei o quanto as flores são importantes na nossa vida, e só o que eu não quero é me arrepender de não ter olhado para todas elas, que todos os dias, de graça, me oferecem o colorido da vida e o cheiro bom das manhas.”
Lorena dobrou a carta, andou com os pés descalços de menina sapeca até a foto do avô que já havia voltado para a estante, deu um beijo na foto e guardou junto à carta.
Na semana seguinte, Lorena não quis ir ao parque, fez com que sua mãe levasse-a até o túmulo de seu avô. Lá, ela plantou a semente de uma flor amarela e prendeu, na lápide, a carta com a cera da vela.
Lorena nunca explicou sua pergunta, mas para ela já era o suficiente saber o que fazer da saudade e da falta que as flores fazem no inverno.